No início do Discurso do método, René Descartes
disserta sobre a distribuição universal do bom senso, que levaria a uma certa uniformidade na
capacidade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso. Descartes faz
um comentário irônico sobre a questão dos indivíduos estarem insatisfeitos com
tudo exceto com seu bom senso, e que não desejariam ter mais bom senso do que
já têm. Face à uniformidade do bom senso, a diversidade das opiniões decorreria
do fato de a condução do pensamento ser feita por diversas vias, sem considerar
as mesmas variáveis.
Descartes afirma a seguir que para se chegar ao
conhecimento da verdade não bastaria ter o espírito virtuoso, mas que seria
necessário antes aplicar esse espírito de maneira correta, e segue explicando
que apenas as boas intenções advindas do bom senso não seriam suficientes para
alguém seguir no caminho do conhecimento pelas vias do pensamento. Para
Descartes, seria mais proveitoso buscar a verdade utilizando-se de métodos
certos e seguros, mesmo que esse seja um processo mais demorado, do que
utilizar-se de métodos rápidos e obscuros que podem conduzir ao erro.
Descartes continua o discurso revelando o seu
racionalismo quando exalta as obras e leis humanas elaboradas com o uso da
razão, planejadas, a priori, especialmente quando criadas pela mente de um só homem.
Por outro lado, Descartes critica o empirismo ao afirmar que frequentemente não
há perfeição nas “obras compostas de várias peças, e feitas pelas mãos de
vários mestres” (DESCARTES, 1973, p. 15), as obras e leis compostas seriam mal
feitas quando elaboradas por muitos, conforme as necessidades dos tempos, e por
fim resultariam caóticas.
Assim, imaginei que os povos que, tendo sido
outrora semi-selvagens e tendo-se civilizado apenas, pouco a pouco, foram
fazendo suas leis somente à medida que a incomodidade dos crimes e das querelas
a isso os forçou não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, desde o
momento em que se reuniram, observaram as constituições de algum prudente
legislador. Como é muito certo que o estado da verdadeira religião, cujos
mandamentos Deus fez sozinho, deve ser incomparavelmente mais bem regulamentado
do que todos os outros. (DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril
Cultura, 1973. Col. Os Pensadores, vol. XV, p.16)
O racionalismo de Descartes o leva a uma crítica
radical em relação ao mundo e a tudo o que do mundo faz parte. Desta forma, por
meio da dúvida metódica oriunda de um ceticismo controlado, Descartes afasta-se
de tudo aquilo que até então fora estabelecido como verdadeiro e dado como
certo. Partindo quase do nada, certo de
que o único pressuposto da sua existência é o pensar, Descartes
estabelece um método universal audacioso inspirado no rigor da matemática -
pela qual tem grande apreço - e que consiste de quatro preceitos.
O primeiro preceito seria o da evidência como
critério de verdade - Descartes inclui em seus juízos somente aquilo que é tão claro
a ponto de não poder gerar a menor dúvida. O segundo preceito seria a divisão
do todo em partes, para então depois proceder-se um exame em cada uma das
partes, ou seja, a análise. O terceiro preceito diz respeito à síntese, na qual
se parte do mais simples em direção ao mais composto. Por fim, o quarto princípio
cartesiano seria o da comprovação, que se faria por meio de enumerações
completas e revisões gerais.
Descartes justifica o descarte dos sentidos como ferramenta de
apreensão da verdade, através da metáfora de que o gênero humano poderia estar
sendo continuamente iludido por um ente poderoso e enganador denominado “gênio
maligno”. Conforme a metáfora de Descartes, esse “gênio maligno” desvirtuaria a
realidade, e estaria sempre se empenhando para criar a ilusão dos sentidos.
Partindo de uma extensão do solipsismo, e baseado no método intuitivo, Descartes concluirá que a única certeza indubitável de que tem é
a de que duvida, e por conseguinte, a de que pensa.
Descartes sempre utilizará como base o método discursivo de
raciocínio intuitivo evidente, método estritamente racional que teria o rigor
da matemática. Através desse tipo de raciocínio, Descartes percebe que o ser
sabe de forma clara e distinta que, para duvidar e pensar tem que existir.
Descartes concluirá dessa forma, que o ser é indissociável do pensar, e que a
causa do ser é o pensar. “Penso, logo existo” (DESCARTES, 1973, p. 38).
Pelo método intuitivo utilizado
por Descartes, é possível obter-se conhecimentos tais como “eu duvido”, “eu
existo”, “eu penso”, ou de que um triângulo é formado por três linhas. Mas esse
tipo de método de raciocínio deixa margens a dúvidas. Desde Platão, no Teeteto, quando Sócrates falava a Teeteto “Mas
o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que há conhecimento, nem
quantos conhecimentos particulares pode haver; minha pergunta não visava a enumerá-los
um por um; o que desejo saber é o que seja o conhecimento em si mesmo. Será que
não me exprimo bem?” (PLATÃO, p.6), ainda hoje não se sabe como dar motivos concretos a um raciocínio
intuitivo, nem como deve ser expresso esse intuir interior. Utilizando-se na
sequência do intuir um raciocínio dedutivo, é possível analisar a conclusão de
Descartes desdobrando o argumento “penso, logo existo” em duas premissas.
Podemos considerar que a premissa maior é "tudo o que pensa existe",
e a premissa menor é "eu penso". A conclusão seria "eu
existo". Mas Descartes não poderá definir exatamente o que é
"pensar", e muito menos o que seja o “eu”, o "ser" e o
“existir”, e a despeito da sombra da hipótese do “gênio maligno”, ele segue
intuindo.
Descartes
acredita que o raciocínio intuitivo evidente seria capaz de produzir
conhecimentos verdadeiros, pois através dele, ele teria alcançado a verdade inquestionável
de que pensa, logo existe. Mas apesar da razão intuitiva ter levado ao desvelo
de uma verdade provisória, ainda não está excluída a possibilidade da
existência do “gênio maligno”, o deus enganador. Descartes então considera
fundamental demonstrar a existência de Deus, um Deus bondoso, que traga
segurança, e seja a garantida da manutenção das verdades alcançadas pela razão.
Para isso Descartes recorre mais uma vez ao raciocínio intuitivo, ao bom senso,
e também a Platão.
Uma
das ideias inatas
que teríamos em mente é a ideia de perfeição, e é esta ideia que Descartes
utilizará como ponto de partida para as provas da existência de Deus. Para
Descartes as ideias inatas eram fundamentalmente os conceitos matemáticos e
também a própria ideia da perfeição. A ideia de perfeição só poderia ter sido
criada por algo perfeito, Deus. Para Descartes, sendo Deus perfeito, teria que
existir, pois não seria possível conceber Deus perfeito apenas como um ser
abstrato - a completude da sua perfeição seria a sua concretização. Alem disso,
Descartes intui que o ser pensante não poderia ter sido o criador de si
próprio, pois se tivesse sido criador de si próprio, ter-se-ia criado a ele
mesmo perfeito, imune e livre dos engodos do “gênio maligno”. Para Descartes,
somente a perfeição divina poderia ter sido a criadora do ser imperfeito e
finito que é o homem, e também de toda a realidade que o circunda.
Deus,
sendo perfeito, não poderia ser enganador. Então assim estaria por fim refutada
a hipótese do “gênio maligno” e abandonado o ceticismo provisório. Descartado o
solipsismo, estaria também garantida a adequação entre o pensamento intuitivo
evidente e a realidade. Se Deus não é enganador, então as nossas evidências
racionais seriam absolutamente verdadeiras.
As
considerações acima são de importância relevante para compreendermos o
pensamento cartesiano desde as primeiras páginas do Discurso do método. Basta
uma leitura inicial na obra para se perceber que a escolástica
nunca deixou de estar presente no espírito de Descartes, pois essa é a
filosofia que lhe foi ensinada e que, mesmo parcialmente imerso nela, ele sonhava
em substituir pela sua. Apesar de Descartes ter inaugurado uma reflexão
independente da fé, o seu raciocínio intuitivo aproxima-se bastante daquela. O
período do Renascimento,
que ressuscitou Platão, e que foi um foco de ceticismo e de pensamento
autônomo, também influenciou Descartes, bem como o medo de ser desaprovado pela
Igreja e de ter um destino semelhante ao de Galileu Galilei.
O
Discurso do método não foi a primeira obra escrita por Descartes, apesar de ser
a sua primeira obra publicada. O
início dessa primeira obra publicada por Descartes é quase uma autobiografia,
com reflexos do seu tempo. No Discurso do método Descartes não teve intenção de
explicitar o método, e sim de mostrar como havia chegado até ele. “Portanto,
meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem
conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a
minha” (DESCARTES, 1973, p. 7). Em todas as suas obras
Descartes procurou aplicar os quatro preceitos do método, evitando
os métodos empíricos e experimentais. Mas os quatro preceitos do método não
evitam que Descartes parta de pressupostos intuitivos para chegar a conclusões
metafísicas próximas aos assuntos da teologia, a qual considerava refratária a
qualquer tipo de abordagem racional.
Eu
venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu; porém, tendo
aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está menos franqueado aos
mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades reveladas que para lá
conduzem estão além de nossa inteligência, não me atreveria a submetê-las à
debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para empreender sua análise e
obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária assistência do céu e ser
mais do que homem. (DESCARTES,
René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultura, 1973. Col. Os Pensadores,
vol. XV, p.11)
Estas palavras lembram, de alguma forma, a célebre
citação de Ludwig Wittgenstein
no Tractatus Logico-Philosophicus: "Sobre aquilo de que não se
pode falar, deve-se calar" (WITTGENSTEIN, 1968, p.129). De forma
semelhante a Descartes, Wittgenstein
decreta que as proposições sobre o místico, sobre Deus, sobre a ética, sobre a
estética e sobre assuntos teológicos, são todas absurdas do ponto de vista dos
requisitos lógicos para a construção de proposições significativas. Wittgentein
não está descartando os objetos dessas proposições, ao contrário, está
sugerindo que a ética, a estética e a dimensão mística e teológica são
transcendentes, não estão ao alcance da linguagem humana. Seria então
necessário ser mais do que homem para ter verdadeiro conhecimento sobre esses
assuntos devido à sua inefabilidade. Segundo Wittgenstein, a melhor atitude em
relação ao transcendente seria a de manter um respeitoso silêncio.
Apesar da dificuldade de aproximar-se de
temas transcendentes apontada por Descartes e Wittgenstein, os filósofos do
presente e do futuro não deverão esmorecer no trabalho de investigação e
aprofundamento de temas ontológicos, metafísicos e mesmo teológicos. Novos paradigmas deverão unir empiristas e racionalistas,
analíticos e continentais. Outros métodos
e preceitos poderão despontar para além das sempre conhecidas formas de
raciocinar. Formas inéditas de pensar abarcarão a complexidade com o auxílio de
computadores e mentes brilhantes sobre os ombros dos velhos gigantes.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultura, 1973.
Col. Os Pensadores, vol. XV.
René Descartes (1596-1650) foi um filósofo francês que
escreveu o Discurso do método, um tratado matemático e filosófico publicado na França 1637. Descartes, por vezes chamado
de “o fundador da filosofia moderna”, é considerado um dos pensadores mais
influentes da história.
O bom senso é ligado à idéia de sensatez, sendo uma capacidade intuitiva de distinguir a melhor conduta em situações
específicas que, muitas vezes, são difíceis de serem analisadas mais
longamente.
Solipsismo é a idéia de que a única realidade é o
próprio eu, e que tudo o mais não tem existência em si própria, ou não se pode
comprovar tal existência. A ilusão do mundo então, incluindo as outras pessoas,
seria uma projeção da mente. A única visão de realidade absolutamente
irrefutável é a solipsista.
_____.
Teeteto e Crátilo. Trad. Carlos
Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2001.
Ideias
inatas seriam ideias que, nascidas conosco, são como que a marca do criador no
ser criado à sua imagem e semelhança. Estas ideias inatas, claras e
distintas, não seriam inventadas por nós, mas produzidas pelo entendimento sem
recurso à experiência. Elas subsistiriam no nosso ser, em algum lugar profundo
da nossa mente, e somos nós que teríamos liberdade de as pensar ou não.
Representariam as essências verdadeiras, imutáveis e eternas, razão pela qual
serviriam de fundamento a todo o saber científico.
Paradigma (do grego parádeigma) literalmente modelo, é a representação de
um padrão a ser seguido. É um pressuposto filosófico, matriz, ou seja, uma teoria, um conhecimento que
origina o estudo de um campo científico; uma realização
científica com métodos e valores que são concebidos como modelo; uma referência inicial como base de modelo para estudos e pesquisas.