No
primeiro ponto, ele resgata a idéia de argumentação aristotélica e a incorpora
na própria palavra. Ou seja, para ele, a palavra possui, por si só, o poder de
persuasão e retórico. A idéia básica é que a língua não tem como objetivo
principal a representação do mundo, mas o argumento.
Polifonia,
por outro lado, significa que um discurso pode carregar sozinho vários sentidos
de interpretação.
Ducrot
publicou, pela editora Pontes, em 1987, O Dizer e o Dito. Ele é responsável
também pela organização da publicação Dicionário Enciclopédico das Ciências da
Linguagem, escrito em parceria com o búlgaro Tzvetan de onde extraímos o artigo
“Dizível/Indizível”, sobre o qual elaboramos essa sistematização.
2) O PARADOXO DO INDIZÍVEL
Artistas,
apaixonados, poetas, lógicos, filósofos estariam de acordo em acusar as
palavras de oferecerem resistência ao pensamento e à realidade. Lamentam-se
responsabilizando linguagem humana por essa incapacidade e limitação - a
linguagem seria incapaz de exprimir certos matizes das sensações e dos
sentimentos, certas sutilezas do raciocínio, certas intuições da experiência
metafísica.
2.1) Stéphane Mallarmé
Mallarmé
foi um importante nome do simbolismo na poesia francesa. Influenciado por
Charles Baudelaire, valoriza o artifício de inverter a sintaxe das frases para
ressaltar a dificuldade como elemento principal. Ele se utilizava dos símbolos para expressar a verdade através da sugestão, mais que da narração. Sua poesia e sua prosa se caracterizam
pela musicalidade, a experimentação gramatical e um pensamento refinado e repleto de alusões
que pode resultar em um texto às vezes obscuro.
2.2) “Les mots de la tribu”
Mallarmé lamentava-se de que “les mots de la tribu” –
as “palavras da tribo”, incapazes de exprimir uma emoção única, o obrigam a
criar para si uma nova língua: ele não pode portanto utilizá-las mas pode
recriá-la, inventando para elas um “sens plur purs” – um “sentido mais puro”
Não
só poetas, mas alguns filósofos e os lógicos também criticariam essas palavras (“les
mots de La tribu”) por não terem um sentido constante; outros filósofos, ao
contrário, a criticariam acusando-a de ter demasiada estabilidade e rigidez, o
que as tornaria insensíveis à infinita variedade das coisas. Isso sem falar na
questão da sensibilidade ao contexto levantada pelos lógicos modernos. A
crítica a esse tipo de linguagem vulgar tem como contrapartida positiva a
afirmação de que existe um “indizível”.
2.3) O Paradoxo
O
que levanta imediatamente em sequência o problema de saber como temos nós,
desse indizível, um conhecimento suficientemente claro para termos certeza de
não o poder dizer; e se temos esse conhecimento claro e explícito, que
fatalidade nos impediria de o exprimir?
A
própria existência do indizível parece só poder ser confirmada na medida em que
ele for, de uma certa maneira ou outra, dizível. Isso é um PARADOXO fundamental
que reflete-se nas diferentes concepções
do indizível, todas elas tentativas de o tornar aparente.
2.4) As diferentes concepções do
indizível:
2.4.1) O Indizível é
limitado à linguagem de que se parte.
Para
alguns o que é indizível do ponto de vista da linguagem natural pode ser dito
por meio de línguas diferentes, mesmo que sejam bastante diferentes da
primeira, como as linguagens lógico-matemáticas. Alguns dizem, por exemplo, que
a literatura, e particularmente a poesia, utiliza-se da linguagem quotidiana,
desenvolvendo dentro dela uma “segunda língua”. Segundo esta concepção, o
indizível estaria necessariamente limitado à linguagem de que se parte.
2.4.2) O indizível é o
limite do dizível
O indizível seria,
nessa concepção, o” horizonte do dizer”. Essa é a linha da dialética aporética
de Platão - que prepara para a verdade denunciando o caráter falacioso de suas
pretensas formulações, sendo que a dialética transformar-se-ia apenas numa
ginástica do pensamento - também é a
linha da teologia negativa de Plotino
que tenta sugerir um conhecimento de Deus dizendo o que ele não é.
Nessa segunda concepção
o indizível depende de dispositivos particulares contidos na própria língua, e
que permitem dirigir a atenção para o que está para além dela, o horizonte. O
indizível está numa espécie de um “depois”.
2.4.3)
O indizível é a condição de possibilidade do dizer
Aqui o indizível é mais
um “antes” que se manifesta na medida em que fundamenta o dizer, na medida em
que nada, sem ele (o indizível), poderia ser dito.
Segundo Wittgenstein na
sua primeira obra, o Tractadus
lógico-philosophicus, existiriam condições necessárias para que a fala
possa ser algo mais do que um ruído, para que ela possa pretender dizer uma
realidade. Mas essas condições seriam elas próprias, por definição, indizíveis.
2.4.4) O indizível é o
que se revela a um outro pensamento
Admite
radicalmente pelo menos dois pensamentos, um dos quais se deixa encerrar nas
palavras, e o outro, por natureza, lhes escapa, segundo o quadro abaixo.
PENSAMENTO
DIZÍVEL
|
PENSAMENTO
INDIZÍVEL
|
Discursivo
|
Intuitivo
|
Sucessão
de análise e sínteses
|
Apreensão
global do objeto
|
Compreensão
mediata, indireta do objeto
|
|
O
objeto é visto do exterior, segundo pontos de vista, em relação a outros.
|
O
objeto é visto do interior, nele mesmo, de modo absoluto
|
O
pensamento distingue-se daquilo que pensa: pensamento desdobrado
|
O
pensamento faz um só com aquilo que pensa: pensamento unificado
|
Ducrot começa a estudar
o indizível não mais sobre as diferentes concepções supracitadas - se bem que
elas servirão de guia e referência para o estudo posterior – mas vai analisar o
indizível segundo os diferentes domínios
em que parecem manifestar-se, com base nas idéias de alguns filósofos que o
representam:
- o indizível da
experiência sensível (do vivido) – Henri Bergson
- o indizível da
metafísica – Platão e Plotino
- o indizível da
linguagem – Ludwig Wittgenstein I
3)
INDIZÍVEL
E VIVIDO
A
descrição do vivido é sempre sentida
como um insucesso ou como um falseamento. Daí a idéia de que o conhecimento da
experiência sensível seja imediatamente contrariado, e, de fato, tornado
impossível, por aquilo a que se chama por vezes “o obstáculo das palavras”.
Um
obstáculo é uma realidade que se encontra interposta entre o ponto em que se
está e aquele aonde se quer ir. Falar da linguagem como de um obstáculo seria,
portanto apresentá-la como algo que “está ali”, que encontramos no nosso
caminho, separando dois segmentos dos quais não faz parte. Imaginar as palavras
como um obstáculo é com supor, igualmente, que a minha experiência sensível, e
o meu esforço em torná-la clara são, ambos, realidades em que a linguagem não
está implicada. Haveria pois, por um lado o sentimento do eu e do não-eu, por
outro lado o desejo de tornar esse sentimento explícito. A linguagem assim
concebida viria intercalar-se entre eles, impedindo a consciência e o
conhecimento de se unirem.
Esse
tema é ilustrado por Ducrot com o auxílio de algumas indicações extraídas das
obras de Henri Bergson, principalmente dos Ensaios
sobre os dados imediatos da consciência.
3.1) O pensamento de
Henri Bergson
Henri Bergson
(1859-1941) acreditava, como Heráclito de Éfeso, que
tudo está mudando o tempo todo, e que o fluxo do tempo é fundamental a toda
realidade. Nós realmente vivenciamos esse fluxo dentro de nós mesmos da maneira
mais direta e imediata, não por meio de conceitos, e também não por meio de
nossos sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento
não-mediado de “intuição”. No entanto, esse conhecimento imediato da natureza
íntima das coisas é bastante diferente em caráter do conhecimento que nosso
intelecto nos dá do mundo externo a nós mesmos.
A realidade
flui. O que nosso intelecto nos fornece são
sempre os materiais exigidos para a ação, e o que queremos é poder prever e
controlar os eventos, por isso nosso intelecto nos apresenta um mundo que
podemos apreender e usar, um mundo repartido em unidade manejáveis, objetos
separados em medidas delimitadas de espaço e também em medidas delimitadas de
tempo.
É
o mundo dos afazeres e negócios diários, do senso comum, e também da ciência.
Sua extraordinária utilidade para nós se exibe nos triunfos da moderna
tecnologia. Mas tudo isso é um produto de nossa maneira de lidar com o mundo,
exatamente da mesma maneira (e pelo mesmo tipo de razão) como um cartógrafo
representará uma paisagem viva em termos de uma grade geométrica quadriculada.
Isso é inegavelmente útil, prodigiosamente útil, e nos permite fazer toda sorte
de coisas práticas que queremos; mas não nos mostra a realidade. A realidade é
um continuum. No tempo real não existem instantes. O tempo real é um fluxo
contínuo, sem unidades separáveis, não delimitado por extensões mensuráveis. O
mesmo com o espaço: no espaço real não há pontos, nem lugares separados e
específicos. Tudo isso são mecanismos da mente.
Assim,
vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo íntimo de nosso conhecimento
imediato tudo é continuum, tudo é fluido, fluxo perpétuo. No mundo externo
apresentado a nós por nossos intelectos há objetos separados ocupando
determinadas posições no espaço por períodos mensuráveis de tempo. Mas, é
claro, esse tempo externo, o tempo dos relógios e do cálculo, é um construto
intelectual, e não é de modo algum o mesmo tempo “real” de cujo fluxo contínuo
temos experiência íntima direta.
Bergson
supõe um “esmagamento da consciência imediata”, que faz com que nós apenas
conheçamos a “sombra de nós próprios” Considerando a linguagem, em grande
parte, responsável por essa alienação, convida-nos a romper as “peias da
linguagem” e a nos “libertarmos das palavras”, apresentando como condição
necessária para o conhecimento de si um esforço para não falar de si próprio.
Isso se opõe, pelo menos provisoriamente, à maiêutica
do diálogo herdada da tradição socrática, surge assim uma maiêutica do silêncio.
Para
Bergson a consciência, ao ser traduzida em palavras, é traída porque a palavra
tem por natureza uma aplicabilidade infinita, enquanto que a sensação é única.
Imagina-se
assim a cor como algo “que é visto”, quando a verdade é que ela constitui um momento vivido: esquece-se o
acontecimento, evidentemente único, em que consiste a visão, para inventar a
idéia de “qualidades sensíveis”, eventualmente universais, que viriam alojar-se
no espírito. Nomear o que se sente seria supor que outro o pode sentir, seria,
pois, separá-lo já do ato pelo qual foi sentido.
Segundo
Bergson a vida da consciência, que é essencialmente contínua, é falseada desde
que tentemos descrevê-la com a linguagem, como uma justaposição descontínua de
elementos nitidamente separados.
Há
na percepção que tenho do azul do céu uma infinidade de matizes e também uma infinidade
de matizes no branco da nuvem. Mas a obrigação que me é imposta pela linguagem
de que me sirvo, de classificar todas essas cores sob as duas únicas
denominações de que me disponho, as palavras azul e branco, faz-me
acreditar em contornos e em separações onde há apenas uma graduação. Do mesmo
modo teríamos também a ilusão da descontinuidade do tempo, com pesadas conseqüências
como a ilusória idéia de uma sucessão de estados que se substituem uns aos
outros, onde existe, de fato, a continuidade de um desenvolvimento.
Constrangida
a dar o mesmo nome a impressões diferentes, incapaz portanto, de dizer a transição,
a linguagem falseia a realidade vivida, forçando-nos a vê-la apenas tal como
pode exprimi-la.
3.3) A vocação
utilitária da palavra
A
generalidade constitutiva da palavra,
o seu valor classificatório e
assimilador, a sua indiferença aos
matizes, tudo isso seria conseqüência da sua vocação utilitária social.
A
função primitiva da linguagem seria a de “estabelecer uma comunicação em vista
de uma cooperação. A linguagem transmite ordens ou avisos - é a chamada ação
imediata. A linguagem também prescreve ou descreve – é o assinalar a coisa, ou
alguma de suas propriedades, em vista a uma ação futura. A palavra será,
portanto, a mesma, quando o procedimento sugerido for o mesmo” (Bergson 1934,
p. 100)
Existe
aí uma semelhança com as idéias de Wittgenstein quando ele diz que qualquer
coisa a ser dita deve representar um fato ou algo no mundo. E também com Austin
no que tange aos atos ilocucionários.
Assim,
a linguagem só distingue na medida em que suas distinções implicam a realização
de atos diferentes. De modo que o recorte
da realidade pelas palavras refletiria apenas as categorias da ação humana.
A
linguagem só não é classificada por Bergson como instrumento utilitário – coisa
de que se dispõe, porque ele a considera como um obstáculo – coisa que se
encontra no caminho. A linguagem estaria lá, presente no mais fundo da nossa
natureza, e separa-nos da nossa consciência. Está arraigada à condição do homem
de ser social, adaptado à cidade, como a “formiga ao formigueiro”. Seria um mal
necessário.
3.4) Segunda ou quarta
concepção?
Para
Bergson, o individual, o único – quer dizer, a consciência – são diretamente
cognoscíveis, independentemente da linguagem, que normalmente os mascara, e
através de um tipo particular de pensamento, a intuição. Assim a filosofia bergsoniana revela o quarto tipo de concepção do indizível: O indizível é o que se revela a um outro
pensamento.
O
aspecto utilitário da linguagem seria responsável pelas abstrações que recortam
a continuidade do vivido e o fazem parecer como uma justaposição de massas,
cada uma interiormente homogênea e claramente separada das outras. Esse falseamento
dos dados da consciência faria suas vítimas entre os filósofos e psicólogos que
se interessam pelo que crêem ser “vida interior”.
“Nós
confundimos o próprio sentimento, que está num contínuo devir, com o objeto
exterior, e sobretudo com a palavra que exprime esse objeto” (BERGSON, Henri Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, 1889, p 99)
Parece
bastante difícil contestar que o vivido seja fundamentalmente indizível, que a
fala o torne necessariamente inconsciente relegando-o para um mundo de objetos,
que se poderia quase definir como o esquecimento do sensível. Mas põe-se o
problema de saber se esta fala, incapaz de dizer a impressão, será mais capaz –
conservando o mesmo sentido para a palavra dizer – de dizer as coisas.
Poder-se-á falar de uma substituição? Poder-se-á falar de uma substituição?
Poder-se-á pensar que as coisas ocupam o lugar recusado às sensações?
Poder-se-á pensar que elas ocupam o lugar recusado às sensações? Poder-se-á
pensar que elas ocupam algum lugar? Porque seria o livro mais “dizível” do que
a impressão colorida que provoca em nós? A existência fora de mim que constitui
o objeto não poderia, com efeito ser descrita, tal como a existência em mim,
atribuída à impressão. Pois se o adjetivo “verde” transforma o vivido em
propriedade da coisa, a palavra “livro”, que se supõe representar a coisa, nada
diz do que ela pode ser, e determina-a apenas em relação às necessidades e ao
comportamento do sujeito. Se o vivido fica para cá do dizer, o “real” fica
irremediavelmente para lá dele.
Na
medida, pois, em que exigimos do dizer que ele seja revelação daquilo que é
dito, nem um nem outro são verdadeiramente dizíveis. Mas a par deste valor de desvendamento (dizer 1), que a linguagem
vulgar jamais possui, pode imaginar-se um sentido mais modesto (dizer 2) , que implica apenas
indicação, designação (dizer 2
não é representar, figurar, imitar, mas fazer, pensar em, fazer sinal para). E
poderíamos então perguntar se a fala não constitui um dizer 2 ao mesmo tempo do vivido e da coisa – e isso exatamente
na medida em que ela não é, e porque não é, um dizer 1.
O
vivido por fim, assim pode ser objeto de um dizer
2, e que existe, como constituinte de qualquer linguagem, uma
referência às impressões análoga à referência às coisas. Isso corresponde abandonar,
neste domínio, a quarta concepção sobre o acesso ao indizível, substituindo-o
pela segunda concepção (o indizível,
horizonte do dizer).
4) INDIZÍVEL
E METAFÍSICA
Este problema toma quase o aspecto de um paradoxo se observarmos que, na
tradição ocidental, os filósofos do indizível se apoiam geralmente nos temas e
nos textos platónicos. Ora a personagem de Sócrates tem, num grande número de
diálogos, a função de ilustrar a virtude do dizer ou, em todo o caso, de um
modo negativo, denunciar os falsos conceitos e os falsos valores, mostrando a
impossibilidade de lhes dar urna formulação coerente.
Poucos autores insistiram tanto como Platão no papel da
palavra como prova, no fato de que uma
ideia impossível de dizer não é uma verdadeira ideia. O que torna
particularmente interessante e instrutivo que uma tradição do indizível tenha o
seu ponto de partida na obra de Platão.
4.1) A propedêutica e a via moral do indizível
Platão através da famosa “digressão filosófica” da sétima
carta (Cartas, 342a-345c) mostra que Dionísio de Siracusa não poderia escrever nada de sério sobre os
princípios fundamentais da natureza, querendo dizer com isso que não pode ser
verdadeiramente
sério aquele que se toma a sério, ou que dá como sério aquilo que diz. A única maneira de ser realmente sério, neste
domínio, é considerar aquilo que se diz
como um simples exercício, uma pura propedêutica que conduz a alma,
purificando-a das ilusões e pretensões, a contemplar uma essência que não pode
ser encerrada nas palavras, sejam elas quais forem.
“Só quando esfregamos
penosamente, uns contra os outros, nomes, definições, percepções da vista e
impressões dos sentidos, quando travamos discussões em que não houve
hostilidade, onde nem as perguntas nem as respostas foram ditadas pela inveja,
é que vem luzir, sobre o objecto estudado, a luz da sabedoria e da
inteligência” (Cartas, VII, 344b)
A palavra só é útil, só aproximaria da verdade quando não
pretende “encerrar nela” a verdade. Só um impostor (como Dionísio) poderia
pretender formular o que é, pois o que é indizível, a palavra, pode, quando muito,
e com a condição de ser praticada com consciência, honestidade e respeito pelo
outro, dispor a alma a concebê-lo.
Encontra-se pois em Platão a ideia ele que o dizer - na
sua forma mais acabada, a dialéctica - seria apenas uma preparação, um
“exercício” (gymnasia), pela qual nos podemos tornar aptos a apreender a
verdade. Esta fica portanto, muito para além do dizer, no sentido em
que se torna acessível através dele e o recompensa, tese que releva como da segunda concepção do indizível.
4.2) O uno
e a via especulativa do indizível
“O uno é ele próprio uno”
(Parmênides 137c-142b) – chamada “primeira hipótese” neoplatônica. Daí resulta que o
uno não participa de nenhurna forma, inclusivamente do ser, pois isso faria
supor existência nele, ao mesmo tempo,
de essa forma e de outra coisa. Mas afirmar de um objecto um atributo qualquer,
significa sempre dizer que esse objecto participa da forma expressa por esse atributo, isso tem como consequência
que não se pode dizer nada do uno, nem sequer que ele é: “Não existe pois
maneira de o nomear, nem de fazer dele objeto de um discurso, nem de dar opinião sobre ele, nem de conhecê-lo”
(Parmênides 142a1). Se o uno é
uno, ele não estabelece relação com nada, não podendo ser nem conhecido nem dito.
Segundo a via moral atrás
assinalada, o diálogo é apresentado como devendo preparar para a verdade, e não
exibí-la. Na medida em que o dizer, no
diálogo, não pode pretender trazer a verdade,
ele não pode provar, no interior do seu próprio exercício, que isto ou aquilo é
indizível: o indizível moral torna inconcebível que nos limitemos a um
indizível especulativo.
4.3) A
teologia negativa
Há porém toda urna tradição
filosófica que leva a sério a primeira hipótese do Parmênides, abandonando
sobre esses assuntos a reserva e a ironia platônicas. Plotino e os seus
discípulos, colocando o uno na origem de tudo o que existe, afirmando a sua
perfeita unidade, devem concluir que nada pode ser dito sobre ele.
O máximo que se pode fazer é negar
que ele seja isto ou aquilo, e, ainda mais geralmente, mostrar que não se lhe
confere nenhuma dererrninação positiva. Daí deriva um modo de filosofar que
conheceu, durante muitos séculos, um sucesso considerável, e a que se chamou a
“teologia negativa”.
Consiste ele em procurar o que Deus
(ou o uno) não é, demonstrando, para cada princípio positivo, que ele é
inadequado ao uno. Encontramos amostras disto no próprio Plotino que demonstra,
por exemplo, que Deus não é virtuoso, ou mesmo que não é (no sentido ern que não poderíamos atribuir-lhe
o ser). É ilegítimo, a propósito destas doutrinas, falarmos de um “indizível especulativo”, pois aí a
realidade do indizível é verdadeiramente
objecto de uma prova, interior ao dizer: demonstra-se que nada pode
ser dito de Deus.
Como distinguir os falsos valores, cujo carácter ilusório
se manifesta na impossibilidade de
serem formulados, das verdadeiras essências, cuja verdade também se manifesta
no facto de escaparem a qualquer formulação. Se atendermos ao próprio Plotino,
parece que a solução deve ser procurada no âmbito da quarta concepção do indizível. Mas o desenvolvimento interno da
teologia negativa, desencadeando um mecanismo interior à linguagem, mas que
leva a ultrapassá-la, coloca essa
questão na segunda concepção do
indizível, sendo o indizível sugerido peja exacerbação das capacidades do
dizer.
A teologia negativa entra nos limites do misticismo
religioso, assim podemos observar que o indizível metafísico, na medida em que
procura fundir-se numa experiência, se aproxima do indizível do vivido.
4.4) O uno (indizível) e o nada
Pode-se perguntar se não seria possível fazer aparerecer a diferença entre o indizível e o nada
no interior mesmo da segunda concepção do indizível.
No Comentário a Parmênides de Proclus, aparece a tentativa da distinção de vários tipos ele
negação, mostrando que não é a mesma que se emprega para negar a propósito do uno e a propósito do nada.
Proclus distingue as negações em três tipos:
4.4.1) Negação de privação (negação forte ou descritiva): que nega a um sujeito uma qualidade que ele poderia ter
mas não tem.
Exemplo: Sócrates
não é branco
Atinge apenas objetos que tenham outras características
positivas (para ser privado de A, é necessário possuir pelo menos outra
qualidade B)
Ela não pode ser
dita, nem do uno, nem do não ser.
4.4.2) Negação de não conveniência: que nega a um sujeito uma propriedade sem relação com a
sua natureza.
Exemplo: A linha
não é branca
OBS: a linha geométrica é privada de espessura e
não pode ter cor.
Pode aplicar-se a qualquer sujeito; quando é utilizada a
propósito do uno, ela indica que este é livre de qualquer essência, que não
poderia ser escravo de qualquer determinação.
4.4.3)
Negação principal: que separa o princípio das suas consequências.
Exemplo: A alma nem
fala nem se cala
OBS: no sentido em que ela é causa da fala e do silêncio.
Dá o valor profundo à teologia negativa.
Dizer por exemplo, que Deus não é virtuoso, deve-se
compreender como significado que ele é origem da virtude, e só se separa dela
na medida em que a produz.
Fica então eliminado o risco de confusão entre o
indizível e o não-ser, pois o nada não poderia ser objecto de uma negação do
terceiro tipo: ele não é princípio, nem causa, nem origem de nada.
Finalmente, pode-se supor que a negação utilizada na
metafísica do inefável não descreve o seu objeto, e isso porque ela é ato e não
conteúdo.
Mas nesse caso, se se reconhece um ato de negação, é
preciso também admitir um ato de afirmação.
Como o demonstrou Austin, que fazendo uma afirmação sobre
um objeto qualquer se realiza também uma ação, definida pelas relações
intersubjetivas que institui.
Mas porque seria esse ato de afirmação mais descritivo do
que o ato de negar, porque seria ele um
dizer 1 conforme discorrido no “indizível e
o vivido”?
5)
INDIZÍVEL
E LINGUAGEM
As
línguas serão consideradas agora como um objeto, e não apenas como um meio. O
problema não será agora o de saber se elas podem servir para comunicar o
indizível, mas de saber em que medida elas o atestam. Essa abordagem está mais próxima da terceira concepção do
acesso ao indizível.
5.1) Restrições a esse
tipo de abordagem
5.2.1) Pressupostos
Nessa
abordagem não será considerada como manifestação do indizível as diversas
possibilidades de dizer de maneira indireta, de dizer “fazendo como se não se
dissesse”, como é o caso das pressuposições e alusões. Não vamos considerar as
estratégias dos falantes postas em práticas, mas as limitações a que estão
sujeitos e que estão além da sua escolha.
O
que se procura é uma espécie de “face escondida” da fala, de ver se todo o
dizer não tem como condição de possibilidade um não dizer, se a fala apóia-se
em cada momento, em algo de impensado.
5.2.2)
Pressupostos absolutos
O
indizível de que se procura tratar aqui é um indizível absoluto e não um
“pressuposto absoluto” de Robin Collingwood. (1889-1943)
A
tese de Collingwood é a de que qualquer afirmação deve ser compreendida como
resposta a uma pergunta, e que uma pergunta pressupõe sempre uma certa crença, sem a qual não teria
sentido colocar a pergunta.
O
pressuposto absoluto é aquele que torna possível certas perguntas, sem poder
ser, ele próprio objeto de uma pergunta. Ele pergunta pelas causas.
5.2) Wittgenstein A
O
primeiro livro de Ludwig Wittgenstein (1889-951), o Tractadus
lógico-philosophicus, apresenta-se como uma reflexão sobre as condições gerais
que tornam possível que uma linguagem, seja ela qual for, sirva para falar de
um mundo, seja ele qual for. E a tese da obra é a de que estas condições
constituem um inefável: não seria
possível falar delas.
Inefável significa o que
não pode ser expresso, aponta para algo de origem divina ou transcendente e com atributos de beleza e perfeição tão superiores aos níveis terrenos
que não pode ser expresso em palavras humanas.
Wittgenstein toma como por evidente , nesse momento do
seu pensamento, que as impressões e as ambiguidades das línguas naturais as
tornam incapazes de dizer o real de modo rigoroso. Ele o os neopositivistas do Círculo de Viena
admitem que esta falha possa ser resolvida graças ao emprego de línguas mais
rigorosas, nomeadamente por meios de simbolismos lógicos (o indizível seria
sucetível desse tipo de acesso, previsto na primeira concepção do indizível)
As linguas artificiais não são totalmente estranhas à
linguagem vulgar (natural): ou são transformações desta ou construções feitas a
partir de delas e por ela definíveis. Refletir sobre as condições que permitem
às linguas lógicas dizer o mundo é
refletir indieretamente sobre a linguagem vulgar.
Uma proposição, como um quadro, pode dizer um estado das
coisas. É um “quadro” das coisas. Supõe-se que a proposição (o quadro) tenha
uma estrutura comum com o que representa. A proposição – como o quadro – pode ser
tanto verdadeira como falsa, e nos dois casos, reenviar à mesma realidade. Deve
haver algo em comum à proposição verdadeira e à falsa e que também pertença
àquilo que uma e outra pretendem representar. Vamos chamar esse elemento comum
de “forma de representação”.
2.16 Os fatos,
para serem figuração, devem ter algo
em comum com o
que é afigurado.
2.161 Deve haver
algo idêntico na figuração e no
afigurado a fim
de que um possa ser a figuração do
outro.
2.17 O que a
figuração deve ter em comum com a
realidade para
poder afigurar à sua maneira —
correta ou
falsamente — é sua forma de afiguração.
2.171 A
figuração pode afigurar qualquer realidade
cuja forma ela
possui.
A figuração
espacial, tudo o que é espacial; a
colorida, tudo
que é colorido, etc.
2.172 Sua forma
de afiguração, contudo, a figuração
não pode
afigurar; apenas a exibe.
2.173 A
figuração representa seu objeto de fora (seu
ponto de vista é
sua forma de representação), por
isso a figuração
representa seu objeto correta ou
falsamente.
2.174 A
figuração não pode, porém, colocar-se fora
de sua forma de
representação.
2.18 O que cada
figuração, de forma qualquer, deve
sempre ter em
comum com a realidade para poder
afigurá-la em
geral — correta ou falsamente é
a forma lógica,
isto é, a forma da realidade.
2.182 Toda
figuração também é lógica. (No
entanto,
nem toda
figuração é, por exemplo, espacial.)
...
2.2 A figuração
tem em comum com o afigurado
a forma lógica
da afiguração
2.21 A figuração
concorda ou não com a realidade,
é correta ou
incorreta, verdadeira ou falsa.
2.22 A figuração
representa o que representa, independentemente
de sua verdade
ou falsidade, por
meio da forma da
afiguração.
2.221 O que a
figuração representa é o seu sentido.
2.222 Na
concordância ou na discordância de seu
sentido com a
realidade consiste sua verdade ou
sua falsidade.
2.223 Para
reconhecer se uma figuração é verdadeira
ou falsa devemos
compará-la com a realidade.
(Wittgenstein, Ludwig – Tractatus
Logico-Philosophicus - Companhia
Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, p 60 e 61)
Estabelecemos que qualquer figuração (quadro, proposição)
é também uma figuração lógica, constituindo a estrutura lógica a forma de representação mais geral e, por
conseguinte, a condição preliminar de qualquer dizer.
5.3) Wittgenstein B
Wittgenstein
abandona bruscamente os neopositivistas do Círculo de Viena defendendo que a
forma lógica de representação não pode, por sua vez, ser representada. Ela
constitui o indizível, e faz surgir o “elemento místico” no encadeamento bem
ordenado do Tractadus.
“O quadro não pode
representar a sua própria forma de representação, ele apenas a mostra”
(Wittgenstein, Ludwig)
A
forma lógica de representação, que está como vimos, implicada em toda a
representação, seja ela qual for, não pode ser objeto de nenhum quadro, de
nenhuma representação.
Já
que não há nenhuma proposição de que ela seja forma, ela não pode ser expressa
em nenhuma proposição, mas somente mostrada.
4.12 A proposição pode representar a realidade inteira,
não pode, porém, representar o que ela deve
não pode, porém, representar o que ela deve
ter
em comum com a realidade para poder representá-
la
— a forma lógica.
Para
podermos representar a forma lógica seria
preciso
nos colocar, com a proposição, fora da lógica;
a
saber, fora do mundo.
4.121
A proposição não pode representar a forma
lógica,
esta espelha-se naquela.
Não
é possível representar o que se espelha
na
linguagem.
O
que .se exprime na linguagem não podemos
expressar
por meio dela.
A
proposição mostra a
forma
lógica da realidade.
Ela
a exibe.
(Wittgenstein, Ludwig – Tractatus
Logico-Philosophicus - Companhia
Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, p 79)
“O que torna possível todo o dizer não pode ser, ele próprio, um
dizer.” (Wittgenstein, Ludwig)
Wittgenstein diz que a
lógica não “diz” as leis lógicas. Ela não poderia dizer que de P->Q e
P pode resultar Q.
Ela pode:
- construir uma proposição (P->Q,P |- Q)
- provar que esta proposição complexa é tautológica (verdadeira, sejam P
ou Q verdadeiros ou falsos)
Esse caráter tautológico apenas mostra, não exprime. Apenas se revela a
legitimidade da regra lógica.
5.4)
Metalinguagens
Mas Bertrand Russel na sua Introdução ao Tractadus diz
que Wittgenstein encontrou um meio de dizer muitas coisas sobre o que não pode
ser dito.
Carnap argumenta que a afirmação do indizível aparece
como contraditória a partir do momento em que é traduzida no interior de uma
metalinguagem L2 dizendo respeito à linguagem L1.
Russel admite que a estrutura de uma linguagem L1 é
indizível em L1. Mas porque não seria ela dizivel em L2, metalinguagem de L1,
sendo a estrutura de L2, expressa ela própria em L3, etc...? O indizível seria
então puramente relativo, conforme a primeira
concepção do indizível. Russel completa afirmando que a teoria de
Wittgenstein é aplicável, sem alterações, à totalidade dessas linguagens.
5.5) Dizer e falar
As objecções precedentes fundamentarn-se numa concepção
do dizer análoga ao do Tractadus (onde
dizer equivale a exprimir, representar). Mas podemos também
interrogar-nos sobre o valor desta concepção - que Wittgensrein abandonou, em
grande parte, na sua última obra, Investigações
filosóficas.
A
investigação linguística fornece diversas razões que podem justificar uma
concepção menos “informativa” do dizer
linguístico:
-
A primeira, verificável pelo estudo do léxico, é que mesmo as palavras
empregadas para designar realidades “objetivas” (substantivos, adjetivos,
verbos) não podem ser definidas por um setor determinado da realidade (uma
classe de coisas, um tipo de propriedades ou de processos)
- A segunda poderia ser inspirada nos atos linguísticos em cuja perspectiva o
valor semântico de um enunciado é inseparável da ação realizada pelo seu
emprego.
- A terceira é
conduzida pelos estudos sobre a função argumentativa (Ducrot). Eles se assentam
na idéia de que alguns morfemas que aparecem com mais frequência nas frases da
língua devem ser entendidos como indicando não as propriedades das coisas, mas
o tipo de conclussões a tirar das palavras pronunciadas.
Essas investigações
linguísticas poem em evidência a idéia de que o dizer humano é um falar. Dizer
alguma coisa, não é “fazer dela um
quadro” mas falar nela a alguém de determinada
maneira.
Falar
designa
genericamente o ato de se exprimir oralmente por palavras, mas dizer associa
a este aspecto o de veicular uma informação, referir, indicar, pronunciar-se
sobre, comunicar (em geral, oralmente e por escrito).
Nessa concepção do dizer, o “indizível” seria um
“infalável”. E a afirmação do indizível já não seria apenas como foi dito como
ser um paradoxo, mas uma verdadeira contradição.