sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sistematização do artigo Dizível/Indizível de Oswald Ducrot

                   1) INTRODUÇÃO

           Oswald Ducrot, linguista francês nascido em 1930, é um dos teóricos mais importantes da teoria linguística contemporânea. As principais contribuições de Oswald Ducrot para o debate da lingüística estão na formulação do conceito de semântica argumentativa e a inserção da noção de polifonia para o estudo da palavra.
 No primeiro ponto, ele resgata a idéia de argumentação aristotélica e a incorpora na própria palavra. Ou seja, para ele, a palavra possui, por si só, o poder de persuasão e retórico. A idéia básica é que a língua não tem como objetivo principal a representação do mundo, mas o argumento.
Polifonia, por outro lado, significa que um discurso pode carregar sozinho vários sentidos de interpretação.
Ducrot publicou, pela editora Pontes, em 1987, O Dizer e o Dito. Ele é responsável também pela organização da publicação Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem, escrito em parceria com o búlgaro Tzvetan de onde extraímos o artigo “Dizível/Indizível”, sobre o qual elaboramos essa sistematização. 

2) O PARADOXO DO INDIZÍVEL

Artistas, apaixonados, poetas, lógicos, filósofos estariam de acordo em acusar as palavras de oferecerem resistência ao pensamento e à realidade. Lamentam-se responsabilizando linguagem humana por essa incapacidade e limitação - a linguagem seria incapaz de exprimir certos matizes das sensações e dos sentimentos, certas sutilezas do raciocínio, certas intuições da experiência metafísica.
2.1) Stéphane Mallarmé
Mallarmé foi um importante nome do simbolismo na poesia francesa. Influenciado por Charles Baudelaire, valoriza o artifício de inverter a sintaxe das frases para ressaltar a dificuldade como elemento principal.  Ele se utilizava dos símbolos para expressar a verdade através da sugestão, mais que da narração. Sua poesia e sua prosa se caracterizam pela musicalidade, a experimentação gramatical e um pensamento refinado e repleto de alusões que pode resultar em um texto às vezes obscuro.
2.2) “Les mots de la tribu”
Mallarmé  lamentava-se de que “les mots de la tribu” – as “palavras da tribo”, incapazes de exprimir uma emoção única, o obrigam a criar para si uma nova língua: ele não pode portanto utilizá-las mas pode recriá-la, inventando para elas um “sens plur purs” – um “sentido mais puro”
Não só poetas, mas alguns filósofos e os lógicos também criticariam essas palavras (“les mots de La tribu”) por não terem um sentido constante; outros filósofos, ao contrário, a criticariam acusando-a de ter demasiada estabilidade e rigidez, o que as tornaria insensíveis à infinita variedade das coisas. Isso sem falar na questão da sensibilidade ao contexto levantada pelos lógicos modernos. A crítica a esse tipo de linguagem vulgar tem como contrapartida positiva a afirmação de que existe um “indizível”.
2.3) O Paradoxo
O que levanta imediatamente em sequência o problema de saber como temos nós, desse indizível, um conhecimento suficientemente claro para termos certeza de não o poder dizer; e se temos esse conhecimento claro e explícito, que fatalidade nos impediria de o exprimir?
A própria existência do indizível parece só poder ser confirmada na medida em que ele for, de uma certa maneira ou outra, dizível. Isso é um PARADOXO fundamental que reflete-se nas diferentes concepções do indizível, todas elas tentativas de o tornar aparente.
2.4) As diferentes concepções do indizível:
2.4.1) O Indizível é limitado à linguagem de que se parte.
Para alguns o que é indizível do ponto de vista da linguagem natural pode ser dito por meio de línguas diferentes, mesmo que sejam bastante diferentes da primeira, como as linguagens lógico-matemáticas. Alguns dizem, por exemplo, que a literatura, e particularmente a poesia, utiliza-se da linguagem quotidiana, desenvolvendo dentro dela uma “segunda língua”. Segundo esta concepção, o indizível estaria necessariamente limitado à linguagem de que se parte.
2.4.2) O indizível é o limite do dizível
O indizível seria, nessa concepção, o” horizonte do dizer”. Essa é a linha da dialética aporética de Platão - que prepara para a verdade denunciando o caráter falacioso de suas pretensas formulações, sendo que a dialética transformar-se-ia apenas numa ginástica do pensamento -  também é a linha da teologia negativa de Plotino que tenta sugerir um conhecimento de Deus dizendo o que ele não é.

Nessa segunda concepção o indizível depende de dispositivos particulares contidos na própria língua, e que permitem dirigir a atenção para o que está para além dela, o horizonte. O indizível está numa espécie de um “depois”. 

2.4.3) O indizível é a condição de possibilidade do dizer      

Aqui o indizível é mais um “antes” que se manifesta na medida em que fundamenta o dizer, na medida em que nada, sem ele (o indizível), poderia ser dito.
Segundo Wittgenstein na sua primeira obra, o Tractadus lógico-philosophicus, existiriam condições necessárias para que a fala possa ser algo mais do que um ruído, para que ela possa pretender dizer uma realidade. Mas essas condições seriam elas próprias, por definição, indizíveis.
2.4.4) O indizível é o que se revela a um outro pensamento
Admite radicalmente pelo menos dois pensamentos, um dos quais se deixa encerrar nas palavras, e o outro, por natureza, lhes escapa, segundo o quadro abaixo.  

PENSAMENTO DIZÍVEL
PENSAMENTO INDIZÍVEL
Discursivo
Intuitivo
Sucessão de análise e sínteses
Apreensão global do objeto
Compreensão mediata, indireta do objeto
Compreensão imediata, direta do objeto      
O objeto é visto do exterior, segundo pontos de vista, em relação a outros.
O objeto é visto do interior, nele mesmo, de modo absoluto
O pensamento distingue-se daquilo que pensa: pensamento desdobrado
O pensamento faz um só com aquilo que pensa: pensamento unificado

Ducrot começa a estudar o indizível não mais sobre as diferentes concepções supracitadas - se bem que elas servirão de guia e referência para o estudo posterior – mas vai analisar o indizível segundo os diferentes domínios em que parecem manifestar-se, com base nas idéias de alguns filósofos que o representam: 

- o indizível da experiência sensível (do vivido) – Henri Bergson

- o indizível da metafísica – Platão e Plotino

- o indizível da linguagem – Ludwig Wittgenstein I

  

3) INDIZÍVEL E VIVIDO 

A descrição do vivido é sempre sentida como um insucesso ou como um falseamento. Daí a idéia de que o conhecimento da experiência sensível seja imediatamente contrariado, e, de fato, tornado impossível, por aquilo a que se chama por vezes “o obstáculo das palavras”.
Um obstáculo é uma realidade que se encontra interposta entre o ponto em que se está e aquele aonde se quer ir. Falar da linguagem como de um obstáculo seria, portanto apresentá-la como algo que “está ali”, que encontramos no nosso caminho, separando dois segmentos dos quais não faz parte. Imaginar as palavras como um obstáculo é com supor, igualmente, que a minha experiência sensível, e o meu esforço em torná-la clara são, ambos, realidades em que a linguagem não está implicada. Haveria pois, por um lado o sentimento do eu e do não-eu, por outro lado o desejo de tornar esse sentimento explícito. A linguagem assim concebida viria intercalar-se entre eles, impedindo a consciência e o conhecimento de se unirem.
Esse tema é ilustrado por Ducrot com o auxílio de algumas indicações extraídas das obras de Henri Bergson, principalmente dos Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. 

3.1) O pensamento de Henri Bergson
Henri Bergson (1859-1941) acreditava, como Heráclito de Éfeso, que tudo está mudando o tempo todo, e que o fluxo do tempo é fundamental a toda realidade. Nós realmente vivenciamos esse fluxo dentro de nós mesmos da maneira mais direta e imediata, não por meio de conceitos, e também não por meio de nossos sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento não-mediado de “intuição”. No entanto, esse conhecimento imediato da natureza íntima das coisas é bastante diferente em caráter do conhecimento que nosso intelecto nos dá do mundo externo a nós mesmos.
A realidade flui. O que nosso intelecto nos fornece são sempre os materiais exigidos para a ação, e o que queremos é poder prever e controlar os eventos, por isso nosso intelecto nos apresenta um mundo que podemos apreender e usar, um mundo repartido em unidade manejáveis, objetos separados em medidas delimitadas de espaço e também em medidas delimitadas de tempo.
É o mundo dos afazeres e negócios diários, do senso comum, e também da ciência. Sua extraordinária utilidade para nós se exibe nos triunfos da moderna tecnologia. Mas tudo isso é um produto de nossa maneira de lidar com o mundo, exatamente da mesma maneira (e pelo mesmo tipo de razão) como um cartógrafo representará uma paisagem viva em termos de uma grade geométrica quadriculada. Isso é inegavelmente útil, prodigiosamente útil, e nos permite fazer toda sorte de coisas práticas que queremos; mas não nos mostra a realidade. A realidade é um continuum. No tempo real não existem instantes. O tempo real é um fluxo contínuo, sem unidades separáveis, não delimitado por extensões mensuráveis. O mesmo com o espaço: no espaço real não há pontos, nem lugares separados e específicos. Tudo isso são mecanismos da mente.
Assim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo íntimo de nosso conhecimento imediato tudo é continuum, tudo é fluido, fluxo perpétuo. No mundo externo apresentado a nós por nossos intelectos há objetos separados ocupando determinadas posições no espaço por períodos mensuráveis de tempo. Mas, é claro, esse tempo externo, o tempo dos relógios e do cálculo, é um construto intelectual, e não é de modo algum o mesmo tempo “real” de cujo fluxo contínuo temos experiência íntima direta.
Bergson supõe um “esmagamento da consciência imediata”, que faz com que nós apenas conheçamos a “sombra de nós próprios” Considerando a linguagem, em grande parte, responsável por essa alienação, convida-nos a romper as “peias da linguagem” e a nos “libertarmos das palavras”, apresentando como condição necessária para o conhecimento de si um esforço para não falar de si próprio. Isso se opõe, pelo menos provisoriamente, à maiêutica do diálogo herdada da tradição socrática, surge assim uma maiêutica do silêncio. 

 3.2) Consciência traída
Para Bergson a consciência, ao ser traduzida em palavras, é traída porque a palavra tem por natureza uma aplicabilidade infinita, enquanto que a sensação é única.
Imagina-se assim a cor como algo “que é visto”, quando a verdade é que ela constitui um momento vivido: esquece-se o acontecimento, evidentemente único, em que consiste a visão, para inventar a idéia de “qualidades sensíveis”, eventualmente universais, que viriam alojar-se no espírito. Nomear o que se sente seria supor que outro o pode sentir, seria, pois, separá-lo já do ato pelo qual foi sentido.
Segundo Bergson a vida da consciência, que é essencialmente contínua, é falseada desde que tentemos descrevê-la com a linguagem, como uma justaposição descontínua de elementos nitidamente separados.
Há na percepção que tenho do azul do céu uma infinidade de matizes e também uma infinidade de matizes no branco da nuvem. Mas a obrigação que me é imposta pela linguagem de que me sirvo, de classificar todas essas cores sob as duas únicas denominações de que me disponho, as palavras azul e branco, faz-me acreditar em contornos e em separações onde há apenas uma graduação. Do mesmo modo teríamos também a ilusão da descontinuidade do tempo, com pesadas conseqüências como a ilusória idéia de uma sucessão de estados que se substituem uns aos outros, onde existe, de fato, a continuidade de um desenvolvimento.
Constrangida a dar o mesmo nome a impressões diferentes, incapaz portanto, de dizer a transição, a linguagem falseia a realidade vivida, forçando-nos a vê-la apenas tal como pode exprimi-la. 

3.3) A vocação utilitária da palavra
A generalidade constitutiva da palavra, o seu valor classificatório e assimilador, a sua indiferença aos matizes, tudo isso seria conseqüência da sua vocação utilitária social.
A função primitiva da linguagem seria a de “estabelecer uma comunicação em vista de uma cooperação. A linguagem transmite ordens ou avisos - é a chamada ação imediata. A linguagem também prescreve ou descreve – é o assinalar a coisa, ou alguma de suas propriedades, em vista a uma ação futura. A palavra será, portanto, a mesma, quando o procedimento sugerido for o mesmo” (Bergson 1934, p. 100)
Existe aí uma semelhança com as idéias de Wittgenstein quando ele diz que qualquer coisa a ser dita deve representar um fato ou algo no mundo. E também com Austin no que tange aos atos ilocucionários.
Assim, a linguagem só distingue na medida em que suas distinções implicam a realização de atos diferentes. De modo que o recorte da realidade pelas palavras refletiria apenas as categorias da ação humana.
A linguagem só não é classificada por Bergson como instrumento utilitário – coisa de que se dispõe, porque ele a considera como um obstáculo – coisa que se encontra no caminho. A linguagem estaria lá, presente no mais fundo da nossa natureza, e separa-nos da nossa consciência. Está arraigada à condição do homem de ser social, adaptado à cidade, como a “formiga ao formigueiro”. Seria um mal necessário. 

3.4) Segunda ou quarta concepção?
Para Bergson, o individual, o único – quer dizer, a consciência – são diretamente cognoscíveis, independentemente da linguagem, que normalmente os mascara, e através de um tipo particular de pensamento, a intuição. Assim a filosofia bergsoniana revela o quarto tipo de concepção do indizível: O indizível é o que se revela a um outro pensamento.
O aspecto utilitário da linguagem seria responsável pelas abstrações que recortam a continuidade do vivido e o fazem parecer como uma justaposição de massas, cada uma interiormente homogênea e claramente separada das outras.  Esse falseamento dos dados da consciência faria suas vítimas entre os filósofos e psicólogos que se interessam pelo que crêem ser “vida interior”.
“Nós confundimos o próprio sentimento, que está num contínuo devir, com o objeto exterior, e sobretudo com a palavra que exprime esse objeto” (BERGSON, Henri Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, 1889, p 99)
Parece bastante difícil contestar que o vivido seja fundamentalmente indizível, que a fala o torne necessariamente inconsciente relegando-o para um mundo de objetos, que se poderia quase definir como o esquecimento do sensível. Mas põe-se o problema de saber se esta fala, incapaz de dizer a impressão, será mais capaz – conservando o mesmo sentido para a palavra dizer – de dizer as coisas. Poder-se-á falar de uma substituição? Poder-se-á falar de uma substituição? Poder-se-á pensar que as coisas ocupam o lugar recusado às sensações? Poder-se-á pensar que elas ocupam o lugar recusado às sensações? Poder-se-á pensar que elas ocupam algum lugar? Porque seria o livro mais “dizível” do que a impressão colorida que provoca em nós? A existência fora de mim que constitui o objeto não poderia, com efeito ser descrita, tal como a existência em mim, atribuída à impressão. Pois se o adjetivo “verde” transforma o vivido em propriedade da coisa, a palavra “livro”, que se supõe representar a coisa, nada diz do que ela pode ser, e determina-a apenas em relação às necessidades e ao comportamento do sujeito. Se o vivido fica para cá do dizer, o “real” fica irremediavelmente para lá dele.
Na medida, pois, em que exigimos do dizer que ele seja revelação daquilo que é dito, nem um nem outro são verdadeiramente dizíveis. Mas a par deste valor de desvendamento (dizer 1), que a linguagem vulgar jamais possui, pode imaginar-se um sentido mais modesto (dizer 2) , que implica apenas indicação, designação (dizer 2 não é representar, figurar, imitar, mas fazer, pensar em, fazer sinal para). E poderíamos então perguntar se a fala não constitui um dizer 2 ao mesmo tempo do vivido e da coisa – e isso exatamente na medida em que ela não é, e porque não é, um dizer 1.
O vivido por fim, assim pode ser objeto de um dizer 2, e que existe, como constituinte de qualquer linguagem, uma referência às impressões análoga à referência às coisas. Isso corresponde abandonar, neste domínio, a quarta concepção sobre o acesso ao indizível, substituindo-o pela segunda concepção (o indizível, horizonte do dizer).

4) INDIZÍVEL E METAFÍSICA
Ao longo de toda a história da filosofia ocidental sempre esteve presente a idéia da possibilidade humana de aceder a uma realidade situada para além da natureza, sendo contudo essa realidade fundamentalmente incomunicável.
Este problema toma quase o aspecto de um paradoxo se observarmos que, na tradição ocidental, os filósofos do indizível se apoiam geralmente nos temas e nos textos platónicos. Ora a personagem de Sócrates tem, num grande número de diálogos, a função de ilustrar a virtude do dizer ou, em todo o caso, de um modo negativo, denunciar os falsos conceitos e os falsos valores, mostrando a impossibilidade de lhes dar urna formulação coerente.
Poucos autores insistiram tanto como Platão no papel da palavra como prova, no fato de que uma ideia impossível de dizer não é uma verdadeira ideia. O que torna particularmente interessante e instrutivo que uma tradição do indizível tenha o seu ponto de partida na obra de Platão. 

4.1)  A propedêutica e a via moral do indizível 
Platão através da famosa “digressão filosófica” da sétima carta (Cartas, 342a-345c) mostra que Dionísio de Siracusa não  poderia escrever nada de sério sobre os princípios fundamentais da natureza, querendo dizer com isso que não pode ser verda­deiramente sério aquele que se toma a sério, ou que dá como sério aquilo que diz. A única maneira de ser realmente sério, neste domínio, é considerar aquilo  que se diz como um  simples exercício, uma pura propedêutica que conduz a alma, purificando-a das ilusões e pretensões, a contemplar uma essência que não pode ser encerrada nas palavras, sejam elas quais forem.
 “Só quando esfregamos penosamente, uns contra os outros, nomes, definições, percepções da vista e impressões dos sentidos, quando travamos discussões em que não houve hostilidade, onde nem as perguntas nem as respostas foram ditadas pela inveja, é que vem luzir, sobre o objecto estudado, a luz da sabedoria e da inteligência” (Cartas, VII, 344b)
A palavra só é útil, só aproximaria da verdade quando não pretende “encerrar nela” a verdade.  Só um impostor (como Dionísio) poderia pretender formular o que é, pois o que é indizível, a palavra, pode, quando muito, e com a condição de ser praticada com consciência, honestidade e respeito pelo outro, dispor a alma a concebê-lo.
Encontra-se pois em Platão a ideia ele que o dizer - na sua forma mais acabada, a dialéctica - seria apenas uma preparação, um “exercício” (gymnasia), pela qual nos podemos tornar aptos a apreender a verdade. Esta fica portanto,  muito para além do dizer, no sentido em que se torna acessível através dele e o recompensa, tese que releva como da segunda concepção do indizível. 

4.2) O uno e a via especulativa do indizível
“O uno é ele próprio uno” (Parmênides 137c-142b) – chamada “primeira hipótese” neoplatônica.  Daí resulta que o uno não participa de nenhurna forma, inclusivamente do ser, pois isso faria supor existência nele, ao mesmo tempo, de essa forma e de outra coisa. Mas afirmar de um objecto um atributo qualquer, significa sempre dizer que esse objecto participa da forma expressa por esse atributo, isso tem como consequência que não se pode dizer nada do uno, nem sequer que ele é: “Não existe pois maneira de o nomear, nem de fazer dele objeto de um discurso, nem de dar opinião sobre ele, nem de conhecê-lo” (Parmênides 142a1). Se o uno é uno, ele não estabe­lece relação com nada, não podendo ser nem conhecido nem dito.
Segundo a via moral atrás assinalada, o diálogo é apresentado como devendo preparar para a verdade, e não exibí-la. Na medida em que o dizer, no diálogo, não pode pretender trazer a verdade, ele não pode provar, no interior do seu próprio exercício, que isto ou aquilo é indizível: o indizível moral torna inconcebível que nos limitemos a um indizível especulativo. 

4.3) A teologia negativa
Há porém toda urna tradição filosófica que leva a sério a primeira hipótese do Parmênides, abandonando sobre esses assuntos a reserva e a ironia platônicas. Plotino e os seus discípulos, colocando o uno na origem de tudo o que existe, afirmando a sua perfeita unidade, devem concluir que nada pode ser dito sobre ele.
O máximo que se pode fazer é negar que ele seja isto ou aquilo, e, ainda mais geralmente, mostrar que não se lhe confere nenhuma dererrninação positiva. Daí deriva um modo de filosofar que conheceu, durante muitos séculos, um sucesso considerável, e a que se cha­mou a “teologia negativa”.
Consiste ele em procurar o que Deus (ou o uno) não é, demonstrando, para cada princípio positivo, que ele é inadequado ao uno. Encontramos amostras disto no próprio Plotino que demonstra, por exemplo, que Deus não é virtuoso, ou mesmo que não é (no sentido ern que não poderíamos atribuir-lhe o ser). É ilegítimo, a propósito destas doutrinas, falarmos de um “indizível especulativo”, pois aí a realidade do indizível é verdadeiramente objecto de uma prova, interior ao dizer: demonstra-se que nada pode ser dito de Deus.
Como distinguir os falsos valores, cujo carácter ilusório se manifesta na impossibilidade de serem formulados, das verdadeiras essências, cuja verdade também se manifesta no facto de escaparem a qualquer formulação. Se atendermos ao próprio Plotino, parece que a solução deve ser procurada no âmbito da quarta concepção do indizível. Mas o desenvolvimento interno da teologia negativa, desen­cadeando um mecanismo interior à linguagem, mas que leva a ultrapassá-la, coloca essa questão na segunda concepção do indizível, sendo o indizível sugerido peja exacerbação das capacidades do dizer.
A teologia negativa entra nos limites do misticismo religioso, assim podemos observar que o indizível metafísico, na medida em que procura fundir-se numa experiência, se aproxima do indizível do vivido. 

4.4) O uno (indizível) e o nada
Pode-se perguntar se não seria possível fazer aparerecer a diferença entre o indizível e o nada no interior mesmo da segunda concepção do indizível.
No Comentário a Parmênides de Proclus, aparece a tentativa da distinção de vários tipos ele negação, mos­trando que não é a mesma que se emprega para negar a propósito do uno e a propósito do nada.
Proclus distingue as negações em três tipos:
4.4.1)  Negação de privação (negação forte ou descritiva): que nega a um sujeito uma qualidade que ele poderia ter mas não tem.
Exemplo: Sócrates não é branco
Atinge apenas objetos que tenham outras características positivas (para ser privado de A, é necessário possuir pelo menos outra qualidade B)
 Ela não pode ser dita, nem do uno, nem do não ser.
4.4.2)  Negação de não conveniência: que nega a um sujeito uma propriedade sem relação com a sua natureza.
Exemplo: A linha não é branca
OBS:  a linha geométrica é privada de espessura e não pode ter cor.
Pode aplicar-se a qualquer sujeito; quando é utilizada a propósito do uno, ela indica que este é livre de qualquer essência, que não poderia ser escravo de qualquer determinação. 

4.4.3)   Negação principal: que separa o princípio das suas consequências.
Exemplo: A alma nem fala nem se cala
OBS: no sentido em que ela é causa da fala e do silêncio.
Dá o valor profundo à teologia negativa.
Dizer por exemplo, que Deus não é virtuoso, deve-se compreender como significado que ele é origem da virtude, e só se separa dela na medida em que a produz.
Fica então elimi­nado o risco de confusão entre o indizível e o não-ser, pois o nada não poderia ser objecto de uma negação do terceiro tipo: ele não é princípio, nem causa, nem origem de nada.

Finalmente, pode-se supor que a negação utilizada na metafísica do inefável não descreve o seu objeto, e isso porque ela é ato e não conteúdo.
Mas nesse caso, se se reconhece um ato de negação, é preciso também admitir um ato de afirmação.
Como o demonstrou Austin, que fazendo uma afirmação sobre um objeto qualquer se realiza também uma ação, definida pelas relações intersubjetivas que institui.
Mas porque seria esse ato de afirmação mais descritivo do que o ato de negar, porque seria ele um dizer 1  conforme discorrido no “indizível e o vivido”?

                  5) INDIZÍVEL E LINGUAGEM 

As línguas serão consideradas agora como um objeto, e não apenas como um meio. O problema não será agora o de saber se elas podem servir para comunicar o indizível, mas de saber em que medida elas o atestam. Essa abordagem está mais próxima da terceira concepção do acesso ao indizível.
5.1) Restrições a esse tipo de abordagem
5.2.1) Pressupostos
Nessa abordagem não será considerada como manifestação do indizível as diversas possibilidades de dizer de maneira indireta, de dizer “fazendo como se não se dissesse”, como é o caso das pressuposições e alusões. Não vamos considerar as estratégias dos falantes postas em práticas, mas as limitações a que estão sujeitos e que estão além da sua escolha.
O que se procura é uma espécie de “face escondida” da fala, de ver se todo o dizer não tem como condição de possibilidade um não dizer, se a fala apóia-se em cada momento, em algo de impensado.
5.2.2) Pressupostos absolutos
O indizível de que se procura tratar aqui é um indizível absoluto e não um “pressuposto absoluto” de Robin Collingwood. (1889-1943)
A tese de Collingwood é a de que qualquer afirmação deve ser compreendida como resposta a uma pergunta, e que uma pergunta pressupõe sempre uma certa crença, sem a qual não teria sentido colocar a pergunta.
O pressuposto absoluto é aquele que torna possível certas perguntas, sem poder ser, ele próprio objeto de uma pergunta. Ele pergunta pelas causas.


5.2) Wittgenstein A
O primeiro livro de Ludwig Wittgenstein (1889-951), o Tractadus lógico-philosophicus, apresenta-se como uma reflexão sobre as condições gerais que tornam possível que uma linguagem, seja ela qual for, sirva para falar de um mundo, seja ele qual for. E a tese da obra é a de que estas condições constituem um inefável: não seria possível falar delas.
Inefável significa o que não pode ser expresso, aponta para algo de origem divina ou transcendente e com atributos de beleza e perfeição tão superiores aos níveis terrenos que não pode ser expresso em palavras humanas.
Wittgenstein toma como por evidente , nesse momento do seu pensamento, que as impressões e as ambiguidades das línguas naturais as tornam incapazes de dizer o real de modo rigoroso. Ele o os neopositivistas do Círculo de Viena admitem que esta falha possa ser resolvida graças ao emprego de línguas mais rigorosas, nomeadamente por meios de simbolismos lógicos (o indizível seria sucetível desse tipo de acesso, previsto na primeira concepção do indizível)
As linguas artificiais não são totalmente estranhas à linguagem vulgar (natural): ou são transformações desta ou construções feitas a partir de delas e por ela definíveis. Refletir sobre as condições que permitem às linguas lógicas dizer  o mundo é refletir indieretamente sobre a linguagem vulgar.
 5.2.1) Forma de representação
Uma proposição, como um quadro, pode dizer um estado das coisas. É um “quadro” das coisas. Supõe-se que a proposição (o quadro) tenha uma estrutura comum com o que representa. A proposição – como o quadro – pode ser tanto verdadeira como falsa, e nos dois casos, reenviar à mesma realidade. Deve haver algo em comum à proposição verdadeira e à falsa e que também pertença àquilo que uma e outra pretendem representar. Vamos chamar esse elemento comum de “forma de representação”.
2.16 Os fatos, para serem figuração, devem ter algo
em comum com o que é afigurado.
2.161 Deve haver algo idêntico na figuração e no
afigurado a fim de que um possa ser a figuração do
outro.
2.17 O que a figuração deve ter em comum com a
realidade para poder afigurar à sua maneira —
correta ou falsamente — é sua forma de afiguração.
2.171 A figuração pode afigurar qualquer realidade
cuja forma ela possui.
A figuração espacial, tudo o que é espacial; a
colorida, tudo que é colorido, etc.
2.172 Sua forma de afiguração, contudo, a figuração
não pode afigurar; apenas a exibe.
2.173 A figuração representa seu objeto de fora (seu
ponto de vista é sua forma de representação), por
isso a figuração representa seu objeto correta ou
falsamente.
2.174 A figuração não pode, porém, colocar-se fora
de sua forma de representação.
2.18 O que cada figuração, de forma qualquer, deve
sempre ter em comum com a realidade para poder
afigurá-la em geral — correta ou falsamente é
a forma lógica, isto é, a forma da realidade.
2.182 Toda figuração também é lógica. (No entanto,
nem toda figuração é, por exemplo, espacial.)
...
2.2 A figuração tem em comum com o afigurado
a forma lógica da afiguração
2.21 A figuração concorda ou não com a realidade,
é correta ou incorreta, verdadeira ou falsa.
2.22 A figuração representa o que representa, independentemente
de sua verdade ou falsidade, por
meio da forma da afiguração.
2.221 O que a figuração representa é o seu sentido.
2.222 Na concordância ou na discordância de seu
sentido com a realidade consiste sua verdade ou
sua falsidade.
2.223 Para reconhecer se uma figuração é verdadeira
ou falsa devemos compará-la com a realidade. 
(Wittgenstein, Ludwig – Tractatus Logico-Philosophicus - Companhia Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, p 60 e 61)

 Por mais variadas que sejam as formas possíveis de representação, um quadro (uma figuração) deve possuir a forma lógica, que é a forma da realidade em geral, e que constitui o mínimo necessário para que haja representação.
Estabelecemos que qualquer figuração (quadro, proposição) é também uma figuração lógica, constituindo a estrutura lógica a forma de representação mais geral e, por conseguinte, a condição preliminar de qualquer dizer.
5.3) Wittgenstein B
Wittgenstein abandona bruscamente os neopositivistas do Círculo de Viena defendendo que a forma lógica de representação não pode, por sua vez, ser representada. Ela constitui o indizível, e faz surgir o “elemento místico” no encadeamento bem ordenado do Tractadus.
“O quadro não pode representar a sua própria forma de representação, ele apenas a mostra” (Wittgenstein, Ludwig)
A forma lógica de representação, que está como vimos, implicada em toda a representação, seja ela qual for, não pode ser objeto de nenhum quadro, de nenhuma representação.
Já que não há nenhuma proposição de que ela seja forma, ela não pode ser expressa em nenhuma proposição, mas somente mostrada.
      4.12 A proposição pode representar a realidade inteira,
      não pode, porém, representar o que ela deve
ter em comum com a realidade para poder representá-
la — a forma lógica.
Para podermos representar a forma lógica seria
preciso nos colocar, com a proposição, fora da lógica;
a saber, fora do mundo.
4.121 A proposição não pode representar a forma
lógica, esta espelha-se naquela.
Não é possível representar o que se espelha
na linguagem.
O que .se exprime na linguagem não podemos
expressar por meio dela.
A proposição mostra a forma lógica da realidade.
Ela a exibe.
(Wittgenstein, Ludwig – Tractatus Logico-Philosophicus - Companhia Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, p 79) 

“O que torna possível todo o dizer não pode ser, ele próprio, um dizer.” (Wittgenstein, Ludwig)
Wittgenstein diz que a lógica não “diz” as leis lógicas. Ela não poderia dizer que de P->Q e P pode resultar Q.
Ela pode:
- construir uma proposição (P->Q,P |- Q)
- provar que esta proposição complexa é tautológica (verdadeira, sejam P ou Q verdadeiros ou falsos)
Esse caráter tautológico apenas mostra, não exprime. Apenas se revela a legitimidade da regra lógica.
5.4) Metalinguagens
Mas Bertrand Russel na sua Introdução ao Tractadus diz que Wittgenstein encontrou um meio de dizer muitas coisas sobre o que não pode ser dito.
Carnap argumenta que a afirmação do indizível aparece como contraditória a partir do momento em que é traduzida no interior de uma metalinguagem L2 dizendo respeito à linguagem L1.
Russel admite que a estrutura de uma linguagem L1 é indizível em L1. Mas porque não seria ela dizivel em L2, metalinguagem de L1, sendo a estrutura de L2, expressa ela própria em L3, etc...? O indizível seria então puramente relativo, conforme a primeira concepção do indizível. Russel completa afirmando que a teoria de Wittgenstein é aplicável, sem alterações, à totalidade dessas linguagens.
5.5) Dizer e falar
As objecções precedentes fundamentarn-se numa concepção do dizer análoga ao do Tractadus (onde dizer equivale a exprimir, representar). Mas podemos também interrogar-nos sobre o valor desta concepção - que Wit­tgensrein abandonou, em grande parte, na sua última obra, Investigações filosóficas.
A investigação linguística fornece diversas razões que podem justificar uma concepção menos “informativa” do dizer linguístico:
- A primeira, verificável pelo estudo do léxico, é que mesmo as palavras empregadas para designar realidades “objetivas” (substantivos, adjetivos, verbos) não podem ser definidas por um setor determinado da realidade (uma classe de coisas, um tipo de propriedades ou de processos)
- A segunda poderia ser inspirada nos atos linguísticos em cuja perspectiva o valor semântico de um enunciado é inseparável da ação realizada pelo seu emprego.
-  A terceira é conduzida pelos estudos sobre a função argumentativa (Ducrot). Eles se assentam na idéia de que alguns morfemas que aparecem com mais frequência nas frases da língua devem ser entendidos como indicando não as propriedades das coisas, mas o tipo de conclussões a tirar das palavras pronunciadas.
Essas investigações  linguísticas poem em evidência a idéia de que o dizer humano é um falar. Dizer alguma coisa, não é “fazer dela um quadro” mas falar nela a alguém de determinada maneira.
Falar designa genericamente o ato de se exprimir oralmente por palavras, mas dizer associa a este aspecto o de veicular uma informação, referir, indicar, pronunciar-se sobre, comunicar (em geral, oralmente e por escrito).
               Nessa concepção do dizer, o “indizível” seria um “infalável”. E a afirmação do indizível já    não    seria apenas como foi dito como ser um paradoxo, mas uma verdadeira contradição.